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Roger Scruton - Discurso na Intercollegiate Studies institute (2019)

 
UMA COISA CHAMADA CIVILIZAÇÃO
É uma grande honra ser nomeado Defensor da Civilização Ocidental para o ano de 2019 pelo ISI, uma organização da qual faço parte há muito tempo e cujo trabalho parece ser cada vez mais importante e necessário, não apenas para os jovens, mas também para nós, que somos de uma geração mais antiga e estamos tentando comunicar aquilo que sabemos.
A civilização ocidental sofreu muitos ataques justamente por ser ocidental. A palavra ocidental se transformou num termo padrão de abuso por muitas pessoas no mundo atual e, em particular, por pessoas que não têm a menor idéia do que ela significa histórica, metafísica ou poeticamente. Nossa civilização ocidental não é uma pequena obsessão peculiar e limitada de pessoas que vivem em uma determinada parte geográfica do mundo. É uma herança em constante expansão, incluindo coisas novas constantemente. É algo que nos deu o conhecimento do coração humano, que nos permitiu produzir não apenas economias maravilhosas e nosso maravilhoso modo de viver, mas também as grandes obras de arte, as religiões, os sistemas de direito e governo, todas as outras coisas que nos permitem perceber que vivemos neste mundo, na medida do possível, com sucesso.
O que é civilização?
Deixemos de lado a idéia da civilização ocidental. Afinal, ela depende da direção para a qual você caminha ao redor do mundo, seja oeste ou leste. Vejamos a idéia de civilização. O que ela é? O que é uma civilização? É certamente uma forma de conexão entre as pessoas, não apenas uma maneira pela qual as pessoas entendem suas línguas, seus costumes, suas maneiras de comportamento, mas também a maneira pela qual elas se conectam, olho no olho, face a face, na vida quotidiana que compartilham.
Essa conexão tem dimensões comuns no local de trabalho e na comunidade, no nosso dia-a-dia. Mas também há uma alta cultura construída sobre ela, como obras de arte, literatura, música, arquitetura e assim por diante. Essas são as maneiras com que mudamos o mundo para ficarmos mais à vontade nele.
Penso que essa é a característica distintiva da civilização ocidental, uma civilização abrangente, constantemente nos dando novos modos de estar em casa, modos de estabelecer relações uns com os outros, que trazem paz e benefícios como os laços fundamentais com o nosso próximo.
Mentes pequenas
 Agora, eu mesmo, obviamente, enfrentei muitos problemas ao defender a civilização ocidental. Parece uma característica estranha de nossos tempos — quanto mais você está disposto a defender a civilização ocidental, mais você é considerado algum tipo de intolerante. Mas as pessoas que fazem essa acusação são as que realmente têm a mente pequena. São pessoas que não vêem exatamente quão grande e abrangente foi nossa civilização, e ainda é.  Fomos educados, por exemplo, na Bíblia Hebraica, um documento antigo que perpetua a civilização do Oriente Médio pré-clássico. Isso nos dá uma noção de como as pessoas são nas comunidades tribais quando vagam pelos desertos, e assim por diante.
Aprendemos e estudamos os grandes épicos de Roma e Grécia, que nos ensinaram línguas diferentes — línguas mortas, mas línguas que mostravam o mundo sob uma luz diferente das nossas próprias línguas hoje.
Fomos criados na literatura da Idade Média, grande parte influenciada pela literatura árabe, é claro. De fato, todos nós fomos colocados na cama para dormir com histórias de ninar das Mil e Uma Noites.
Quanto mais você a observa, mais se percebe que a herança da nossa civilização é abrangente e universal. E isso é algo que tendemos a esquecer hoje. Não é um legado limitado. É algo que realmente está aberto a todos os tipos de inovação, que toma como objeto o ser humano como um todo.
Certamente é assim que eu encaro esse legado. Sempre me alegrei por ser professor de humanidades porque são sobre elas que trata esse legado, é sobre ser humano e tods as maneiras pelas quais esse modo de ser é diversificado e abrangente no mundo em que estamos hoje.
Quem é o intolerante?
O que quer que façamos, devemos lutar contra essa acusação de que de alguma forma nossa civilização é limitada, dogmática, intolerante e exclusiva. Não é assim. Compare com o quê, afinal? Com os chineses? Somos limitados, fanáticos e exclusivos quando colocados ao lado da grande tradição confucionista? De modo nenhum. Fui criado, como muitos outros, interessado pela civilização chinesa. Lemos O Livro das Odes, de Confúcio, na tradução de Ezra Pound. Todos nós nos apaixonamos pela Das Lied von der Erde, de Mahler, uma das maiores adaptações musicais da poesia chinesa, certamente maior do que qualquer coisa que eu já ouvi na música chinesa. E pronto! Aí está: um comentário preconceituoso.  Mas sabemos que isso não é preconceito nem intolerância. Ao contrário, uma prova do aspecto generoso e aberto da nossa cultura é o fato de um compositor como Mahler estenda as emoções típicas de um vienense romântico na direção daqueles poemas solitários que ele transformou numa música tão bonita, que no final do último desses poemas, no deixa com aquele acorde incrível, que, como Benjamin Britten descreveu, permanece impresso no ar.
Por que agora estamos sendo forçados a uma posição defensiva quando é tão óbvio para qualquer um que saiba alguma coisa sobre isso que o que chamamos de civilização ocidental não é senão outro nome para a civilização como tal e para todas as conquistas da civilização que os jovens precisam conhecer e se possível adquirir? Parece-me que o problema parte da invasão do mundo acadêmico e intelectual por grupos ativistas que não se dão ao trabalho de aprender o suficiente para saber o que estão enfrentando, mas, no entanto, definem sua posição em termos de agendas políticas. Essas agendas políticas baseiam-se no pertencimento a um grupo salvacionista: nós nos salvamos porque acreditamos nas coisas certas e estamos caçando em todos os lugares aquelas presenças venenosas que estão tentando nos excluir da posse de nossa herança legítima.
E todas as novas causas são escolhidas por esses motivos. São causas de pessoas que querem sentir que a ordem existente das coisas as exclui e, portanto, estão justificadas a derrubar essa ordem para colocarem si mesmas no topo. Estando no topo, elas a reorganizarão para purificá-la de todas aquelas influências antigas e corruptas que até agora foram exageradamente enfatizadas. Acho que essa invasão do ativismo político nas universidades, nas humanidades e em todos esses canais da civilização é um dos grandes desastres de nossa época.
Isso, porém, não precisava acontecer. Não precisamos ouvir essas pessoas. Não precisamos nos envolver em seus julgamentos espetaculosos, em suas cartas de repúdio, nem nas maneiras pelas quais as pessoas foram perseguidas e expulsas da comunidade. Só porque participamos é que esses ativistas têm algum sucesso. Não precisamos participar. É bem possível recuar e até rir de algumas das coisas que estão sendo ditas.
Se você observar todo o delírio sobre o ativismo transgênero, por exemplo, muito disso é pura confusão, e confusão da qual as pessoas querem ser resgatadas. Grande parte de sua raiva é um tipo de pedido de socorro. Mantenha a calma e diga: Existem outras visões além da sua. Você pode ter um ponto de vista, mas não é o único ponto. Vamos discutir isso. Vamos vê-lo no contexto de toda a civilização e para onde ela está indo.
Fazer isso seria suficiente para neutralizar uma grande quantidade da tensão que tem nos afetado.
Um tempo de coragem
Sinto que agora é o tempo, sobretudo por meio de instituições como a ISI, de trazer coragem e convicção novamente aos jovens que sabem que há algo errado com essa perseguição ao antigo currículo. Parece-me que chegou a hora de pessoas como eu e a geração mais antiga de professores encorajar os jovens, e dizer: Veja, vocês têm uma civilização e uma herança que os ajudam a entender essas coisas. Vocês não estão fazendo se ajudando dando lugar a ativismo desse tipo, um ativismo que exclui domínios inteiros do conhecimento humano. Não estão trazendo até você as coisas das quais vocês realmente precisam no mundo em que continuarão vivendo.
O que vocês precisam fazer é estabelecer um diálogo, um diálogo sobre o que é a civilização. Tentem entender a condição humana em toda a sua complexidade. Vocês não precisam concordar quando as pessoas tentam radicalizar e politizar o currículo e o que é ensinado e pensado nas universidades. Vocês podem até rir deles. Na verdade, ainda é legalmente permitido rir das pessoas em nosso país e em nossa civilização. Afinal, a comédia é um dos grandes presentes dessa civilização. E depende de vocês, acredito, exercitá-la.
Portanto, minha mensagem final é que não devemos nos desesperar com a civilização ocidental. Só devemos ter o cuidado de reconhecer que não estamos falando de algo pequeno e mesquinho chamado Ocidente. Estamos falando de uma coisa aberta, generosa e criativa chamada Civilização.

Tradução para o português: Leilah Carvalho 
Publicado originalmente em The Intercollegiate Studies Institute, em setembro de 2019.

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